segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Histórias de Babel IV - Mamma Estiva


Não foi à-toa, respeito nasce de sólida base moral ou no seu oposto e ainda também na força bruta, que generosa não exclui as anteriores. Mamma construiu uma sólida reputação em cima do temor e do respeito, sua autoridade forjou-se na associação de seu egocentrismo à sua total falta de respeito, muito bem dissimulada. Uma mulher de muitas histórias e uma das mais importantes delas é o misto de história e fábula sobre sua habilidade no manuseio da inseparável faca que carrega na bota. Contam alguns poucos que conseguiram transpassar sua forte carapaça - forjada a partir de sua infância, nos conflitos diários com seu pai - que ela fugiu pela janela de casa aos quinze anos. Abandonou o conforto do lar para entregar-se ao fogo juvenil da paixão numa terça-feira que nem ela nem os seus esqueceriam para o resto de suas vidas. Deixou para trás sua cidade, sua gente, dentro de um confortável automóvel, seduzida por um galanteador ímpar, o maior atirador de facas, palavras e pedras para o alto jamais visto e também a grande atração de um circo que por ali passou. Quando o circo parou na próxima cidade e estendeu sua lona próximo ao porto, a menina que ali chegava numa carruagem de sonhos, não concebia que ali começava sua universidade, onde graduaria-se por força das circunstâncias e pós-graduaria-se com louvor por opção. O circo não era lá essas coisas, mas o amor e o fato de seu amado e ídolo já ter sido atração do telejornal matinal nacional da televisão paraguaia - tudo muito bem documentado- justifica o dito forjado com alguma maldade em uma das acadêmias de física, certamente por algum desiludido que diz que “a fantasia feminina lidera a expansão do universo”. Após uma temporada de luxúria, acordou zonza sem saber ao certo onde estava.. Chamou pelo seu Tarzan - era assim que ela o tratava na intimidade – mas o seu protetor da selva de pedra nada respondeu. Acabou por levantar-se lentamente indo ao encontro da parede do minúsculo quarto 2x2, pisando por cima de algumas roupas amassadas no chão que abrigava num dos cantos sua calcinha de renda preta, a que lhe fazia sentir fatal, tudo isso misturado ao odor de vazio, de lugar de ninguém e de sexo feito ao amanhecer. Tinha se especializado em motéis baratos e outras espeluncas inomináveis e, por isso, num determinado tempo de sua vida acrescido do ato em banco de automóveis, foram as únicas maneiras possíveis de excitação e chegada ao clímax.. Tomou um banho numa água abundante que jorrava diretamente do cano quase rente a parede, resmungou alguns xingamentos pelo frio. Lembrou que ela e Elísios numa daquelas conversas despreocupadas do pós ato, que concordaram que ele tinha a maior e melhor profissão, advindo do fascínio de ambos por aquilo que fere frio. Havia consigo nesta manhã o incômodo sentimento de culpa por ter partido sem poder trazer seu cãozinho de raça indefinida. Vestiu-se lentamente, espiou-se vaidosamente num pedaço de espelho estrategicamente posicionado, deu uma ajeitada no cabelo dando-lhe ares de descuido pensado, sai descendo preguiçosamente as escadas, dividindo o pensamento entre a necessidade de um bom café da manhã, o cão e a felicidade carnal. Ao passar pela portaria, ouviu:
- Ei, você!
- Ah?!
- O Elísios deixou isto aqui pra você.
Ela, que sempre adorou cartas, desta vez sentiu nas entranhas que aquela não era de boas notícias, e gelou. Abriu lentamente, ouvindo os sons de seu coração palpitante, sentido os batimentos com a intensidade dos tons graves da música eletrônica..
“Minha pequena Idosa
Nunca pensei que poderíamos ir tão longe. Foram tantas loucuras nesses poucos dias. Posso dizer que te amo, amo demais. Minha vida estava sem sentido até o dia que te encontrei sentada e triste e dividimos o banco da praça onde estava o circo. Mas há uma incomoda verdade, tenho uma família e você sempre soube disso, não podendo conciliar, optei pelo estabelecido, pela minha família. Esses momentos que vivemos estarão para sempre guardados no meu coração. O circo deve chegar a minha cidade, que também é a do patrão, em três ou quatro dias. Faremos uma pequena pausa, minha mulher e meus filhos me esperam por lá. Te desejo toda sorte do mundo, por ser essa pessoa maravilhosa que é. Espero que me perdoe e acredite que tudo que te disse tenha vindo do coração. Embora o coração seja engenhoso na mentira, um palhaço, um atrapalhado por natureza. Estou te deixando estes trocados, é o que posso te oferecer por hora, para que volte para tua família, assim como estou voltando para minha. Guarde nossa linda história no seu coração.
Te amo.
Do teu, para sempre, Elísios.
Ps: Caprichei na escrita, afinal você adora carta.

A vida só vale a pena se vivida intensamente”


Já fazia quinze dias que o circo havia partido levando com ele seu amado. Os pequenos furtos para saciar a fome nos supermercados locais já estavam ficando arriscados, o dinheiro já não dava mais pra garantir a volta, na verdade nunca seria o suficiente -o retorno teria um preço demasiado alto- daria para no máximo com alguma negociação mais uns quatro ou cinco dias no 2x2 do hotel Continental Tia Jane. Foi neste dia de muita lucidez , falta de perspectiva e total desespero que ela conheceu Elisa, também moradora do Continental, e detentora da profissão mais antiga do mundo. Boemia, a loira farta e generosa sentiu-se irmanada à pequena numa bebedeira homérica.. Elisa tornou-se sua madrinha, mãe, confessora, mestra e tutora.. Mamma na sua meninice logo caiu no gosto dos marinheiros e principalmente dos estivadores trabalhadores da doca. Apropriou-se de seus vocabulários e fazendo bom uso deles na hora apropriada, levando seus clientes ao delírio. Prosperou no ramo, abriu sua casa, tatuou, teve muitos homens, mas seu coração ainda pertence ao que ela chama de verdadeiro amor. Hoje, pelas coisas que viveu, nos seus trinta e poucos anos de vida, Mamma ainda é uma linda mulher. E é na beleza que o perigo tem predileção por fazer morada. Fantasiosa e sagaz na arte da retórica e do sofismar, dominou as sutilezas entre mentir e omitir como ninguém. Fez-se PHD na arte do “negar até a morte”. Sempre lhe faltou a noção do momento exato para a pontuação final. E nem estes poucos que a conhecem ou julgam que a conhecem, conseguem imaginar a respeito do que ela diz, o local aproximado onde realidade e mentira tenha esticado a sua tão frágil cerca divisória , uma vez que nem mesmo Mamma consegue definir. Ela ainda espera por uma carta ou um email de Elísios alimentado por um sonho que fortificou quando num momento de decepção, amargura e culpa entregou todas as juras, bilhetes e a carta de despedida num envelope a um cliente caminhoneiro apaixonado, com a incumbência de entrega-lo a Cássia mulher de Elísios, descrita por esse em alguns momentos como intempestuosa em outros de barraqueira. Tudo isso, movida por um desejo inconsciente de afastar os obstáculos de seu caminho. Tarefa que o apaixonado motorista executou com dedicada eficiência em nome dos favores concedidos. Contagiando a distância num longo beijo espiritual envenenando, seu amado Elísios, que abalado, silênciou-se. Esta carta que ela ainda espera deverá vir em resposta as muitas escritas por ela e que logo após o término de sua grafia lhes roubavam a coragem e a força para posta-las o que acabou por encher uma gaveta ou ainda dos emails escondidos em alguma pasta secreta de um dos computadores do La Rose – seu mais rentável investimento- também não enviados. Sua predileção direciona seu desejo para uma carta romântica que virá escrita em um lindo papel reciclado composto por pedaços de pétala e odor de rosas vermelhas, com todos os adjetivos elogiáveis contidos no Aurélio e nela ele ainda se desculpará pelo grande erro que cometera ao entrega-la a sorte, pelas mentiras solenes e sua falsa e atenciosa preocupação calculada. Se dirá arrependido e anunciará sua chegada em dois dias. Chegará montado montado em um corcel branco lindo como estava no dia em que iniciaram a fuga e desse dia em diante se dissolverá o passado havendo somente o presente. Irão morar numa cabana que ele comprou com os seus vencimentos na região dos grandes lagos canadense que agora faz calor ao dia .Sim, ela acredita em príncipe, mas afinal, quem não acredita?

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